quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Dom Casmurro - Capitu Traiu?

Quadro de Renoir
.

Capitu... olhos oblíquos de cigana dissimulada... olhos de ressaca...

Reli Dom Casmurro (de Machado de Assis). Tinha a curiosidade de ver se a perspectiva que eu tinha da estória, mudava, se a visão dos fatos apresentados, me clareariam às idéias em relação à dúvida que o livro deixa:

Capitu traiu ou não traiu o Bentinho?

"Se Capitu nunca traiu Bentinho, então Machado de Assis se chamava José de Alencar!" (Dalton Trevisan)

Estive matutando à respeito e se tem uma coisa que na literatura brasileira sempre dá margem a mil discussões, é essa dúvida sobre a infidelidade da Capitu.

Quando eu estava na oitava série, os alunos do terceiro ano, do ensino médio, encenaram um júri, onde, Capitu era a ré, e deveriam julgar se Capitu traíra ou não, o Bentinho... fiquei fascinada! A menina que interpretava a Capitu, chorava rios de lágrimas, com a ajuda de uma cebola cortada e escondida estrategicamente, na mão direita... ela levava a mão aos olhos e pronto, chorava que era uma beleza!

Mas, enfim, vamos aos fatos:

* Desde a infância, já fica bem claro o quão dissimulada era Capitu. Diante das maiores saias justas, ela mentia tão bem e agia tão naturalmente, que chega a ser desconcertante... ela manipulava o Bentinho, que durante a infância, era muito ingênuo...

* Capitu não engravidou nos primeiros anos de casamento, e Bentinho desejava muito um filho...

* Bentinho, depois de uma crise de ciúmes, fica sabendo, por Capitu, que ela se encontrou em algumas tardes, com o seu amigo, Escobar, para tratar de finanças...

* Bentinho vai ao teatro sozinho, pois Capitu alega mal estar. Mas, muito preocupado e saudoso, volta mais cedo e dá de cara com Escobar, no corredor da sua casa. Nesse ponto, o livro não diz se Escobar está chegando ou saindo... o fato é que, quando Bentinho entra em casa, junto com Escobar, ele encontra Capitu de pé, muito bem disposta;

* Logo depois Capitu engravida e o narrador frisa. Ela nunca mais engravidou. Ezequiel era filho único do casal.

* Bentinho questiona Capitu o porque de a mãe dele não estar mais lhes visitando, como era de costume, frisa que a mãe não trata Capitu carinhosamente, como antes e que até o menino, ou seja, o neto ela não adula mais, não dá confiança... Capitu diz que é apenas ciúmes de sogra... (aqui da´ a impressão que a mãe de Bentinho sabia de algo entre Capitu e Escobar)

* Ezequiel cresce e vai parecendo cada vez mais com Escobar, inclusive nos gestos, trejeitos, aparência física e caminhado... e se parece muito também com a filha de Escobar (que pode ser sua irmã).

* A esposa de Escobar, em determinado momento, parece desconfiar, e quando este morre, ela não aceita que Capitu (até então, sua melhor amiga) passe a noite com ela, e depois vai embora da cidade...

* Depois da separação, Capitu vai morar no exterior, e o José Dias, o agregado da família de Bentinho, corresponde-se freqüentemente com ela e sempre lhe pede que envie fotos do menino pra família, no Brasil, e ela nunca manda... (parece querer esconder, a qualquer custo, a enorme semelhança entre ezequiel e o finado Escobar)

* Quando Ezequiel reaparece, já adulto, para visitar o “pai” (Dom Casmurro – Bentinho) vejam:

Ao entrar na sala, dei com um rapaz, de costas (...). Vim cauteloso e não fiz rumor. Não obstante, ouviu-me os passos e voltou-se depressa. Conheceu-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário de S. José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo e, salvo as cores, que eram vivas, o mesmo rosto do meu amigo. (...) era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar. (...) A voz era a mesma de Escobar, o sotaque era afrancesado...

* Vc já se fez a seguinte pergunta?:

Como Capitu reage às suspeitas de Bentinho e a decisão deste em terminar com o casamento?

Pois bem, leiam como ocorreu:

- Papai! Papai! exclamava Exequiel. – Não, não, eu não sou seu pai!

Quando levantei a cabeça, dei com a figura de Capitu diante de mim. Eis aí outro lance, que parecerá de teatro e é tão natural como o primeiro, uma vez que a mãe e o filho iam à missa e Capitu não saía sem falar-me. Era já um falar seco e breve; a maior parte das vezes, eu nem olhava para ela. Ela olhava sempre, esperando.

Desta vez, ao dar com ela, não sei se era dos meus olhos, mas Capitu pareceu-me lívida. Seguiu-se um daqueles silêncios, a que, sem mentir, se podem chamar de um século, tal é a extensão do tempo nas grandes crises. Capitu recompôs-se; disse ao filho que se fosse embora e pediu-me que lhe explicasse...

- Não há que explicar, disse eu.

- Há tudo; não entendo as tuas lágrimas nem as de Ezequiel. Que houve entre vocês?

- Não ouviu o que lhe disse?

Capitu respondeu que ouvira choro e rumor de palavras. Eu creio que ouvira tudo claramente, mas confessá-lo seria perder a esperança do silêncio e da reconciliação; por isso negou a audiência e confirmou unicamente a vista. (...) repeti-lhe as palavras...

- O quê? Perguntou ela como se ouvira mal.

- Que não é meu filho.

Grande foi a estupefação de Capitu e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais ambas que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro. (...) Após alguns instantes disse-me ela.:

- Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto, você que era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal idéia? Diga, - continuou vendo que eu não respondia nada, - diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu tal convicção? Ande; Bentinho, fale! Fale! Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.

- Há coisas que se não dizem..

- Que se não dizem só metade; mas já que disse metade, diga tudo.

Tinha-se sentado numa cadeira ao pé da mesa. Podia estar um tanto confusa, o porte não era de acusada. Pedi-lhe ainda uma vez que não teimasse.

- Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!

- A separação é coisa decidida, redargui, pegando-lhe na proposta. Era melhor que a fizéssemos por meias palavras ou em silêncio; cada um iria com a sua ferida. Uma vez, porém, que a senhora insiste, aqui vai o que lhe posso dizer, e é tudo.

Não disse tudo; mal pude aludir aos amores de Escobar sem proferir-lhe o nome. Capitu não pode deixar de rir, de um riso que eu sinto não poder transcrever aqui; depois em um tom juntamente irônico e melancólico;

- Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!

Concertou a capinha e ergueu-se. Suspirou, creio que suspirou, enquanto eu, que não pedia outra coisa mais que a plena justificação dela, disse-lhe não sei que palavras adequadas a este fim. Capitu olhou para mim com desdém e murmurou:

- Sei a razão disto; é a *casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio... Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer mais nada.

*Capitu se referindo ao fato de Ezequiel parecer com o finado Escobar (o suposto pai).

Pois bem, não é estranho que ela não tenha negado, ou pelo menos tentando se justificar, ou convencer Bentinho de que ele estaria enganado? Que ela nunca o traíra e tals? Mas ao contrário, ela deu o assunto por encerrado! Neste ponto ela da margem pra o leitor acreditar ainda mais que ela traiu sim...

A personagem Capitu é uma das maiores criações de Machado de Assis. Sua complexidade psicológica é visível mas, ao desvendar sua personalidade, o escritor cria mecanismos sutis que impedem a mesma de aparecer em sua totalidade, envolvendo-a em uma aura de mistério e tendências difusas.

"Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti" - "Eclesiastes" - citado por Bentinho

Por fim, confesso que nesta releitura, eu fiquei um pouco em dúvida quanto à traição, porque Bentinho era ciumento ao extremo, e isso pode ter influenciado a narrativa (que é unilateral) do livro, inclusive, ele conta fatos da infância de Capitu, como se preparasse o leitor para olhar este lado meio dark dela...

Mas, as dúvidas que ele tem em relação à fidelidade de Capitu, também são as minhas dúvidas, e, elas pendem mais para a certeza da traição. Conclusão, continuo achando que a Capitu traiu sim.

Olhos de Ressaca
.
E para quem não entende o que Machado de Assis quis passar, ao dizer que Capitu tinha Olhos de Ressaca, eu encontrei uma explicação que achei muito boa:

Vocês sabem como Bentinho identifica Capitu no início do Dom Casmurro de Machado de Assis? Capitu tinha "olhos de ressaca", porque os olhos de Capitu eram como aquela onda cava e profunda que ameaça avançar e tudo tragar, inclusive o narrador da história, o próprio Bentinho. Esses "olhos de ressaca", colocados no início da narrativa, caracterizam a personagem e depois desaparecem. Até que no fim, quando o drama já se desenvolveu e há um suposto adultério entre Capitu e Escobar, o melhor amigo de Bento, Escobar morre. Morre onde? No mar. Quando? Durante uma ressaca. E Machado de Assis retoma o que tinha anunciado no começo do romance, dizendo que, na hora em que o caixão de Escobar se fechou, Bentinho viu Capitu chorando, e os olhos de Capitu eram como a ressaca do mar que tinha tragado Escobar, o nadador da manhã. A mesma ressaca que ameaçou tragar Bentinho no início do livro.

A ressaca do mar é um achado literário de Machado, e isso não é pouco na literatura. Trata-se de uma metáfora que, em última análise, amarra todo o livro, todo o drama das personagens.

(Trecho do texto proferido por Flávio Loureiro Chaves na Casa Mário Quintana em Porto Alegre, por ocasião do lançamento de O Clarão, em 15 de maio de 2001.)

Então deixo a pergunta: Capitu traiu ou não traiu o Bentinho?

Inté...

.