quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

A Ferida

Ela lambia vagarosamente o fio de cabelo. E como um cão com a ferida, vigiava os lados para se certificar da solidão. Da cozinha podia ver o marido assistindo a reprise do futebol e ouvir a gritaria dos moleques que brincavam de bola dentro do quarto – quantas vezes eu já disse que não pode jogar bola aqui?-, mas o barulho da TV e as vozes das crianças não a tiravam da letargia. Sentia vontade de deixar queimar o arroz, o feijão, salgar a carne. Queria ainda deixar a pilha de louça suja esquecida na pia, desligar a máquina de lavar roupa e não atender à porta de serviço – a senhora pediu água? Jogou os cabelos para trás e ficou olhando o homem levantar o galão de vinte litros e colocá-lo no suporte em cima do balcão. Queria estar dentro dele, ser aquela água límpida que logo escorreria pela boca de alumínio fosco, que encheria os copos e os jarros da casa e acabaria esparramada no chão pela fúria do filho mais novo.
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A chaleira apitou e ela caminhou até o armário.
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Na noite anterior, sem que ninguém percebesse, tinha derramado todo o pó de café na lixeira da rua. Não sabia onde estava com a cabeça, mas de alguma forma sentia necessidade de acordar e não ter o café para fazer. Deitou-se mais cedo e ficou a madrugada revirando-se na cama. Pensava no marido, nas crianças cobrando a xícara de café-com-leite e ela ali, no meio da cozinha, sorrindo e dizendo: hoje não tem. Mas não teve forças de seguir adiante em seu intuito. Levantou-se antes das seis da manhã, correu à casa da mãe e trouxe de lá o pó que ia agora colocar no filtro por onde escorreriam a água quente e seus desejos noturnos. E lembrando-se deles, sentou-se na cadeira, puxando mais um fio de cabelo. Não havia pressa no movimento, só esperança. Esperança de que aquele fio, depois de lambido e engolido, lhe preenchesse o vazio.
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Vássia Silveira
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ELBA RAMALHO - TRE...

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Inté...

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