segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Sebos e Traças


Sebos & Traças
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Eu perdoaria tudo. Perdoaria se o tivesse encontrado nos braços da amiga. Se as mãos estivessem grudadas na ninfeta. Se as costas acariciadas fossem as da vizinha ou se os lábios roçassem a nuca, a face, a boca da estrangeira. Perdoaria se a língua estivesse entre as pernas da ex, se o sexo gritasse pela carne flácida da empregada ou se os dedos fossem enfiados na traseira da prima. Tudo menos isso... Cena infame, traição sem nome, como pôde? Como pôde fazer?

As lembranças passam embaralhadas na minha cabeça. Estamos os dois, entre as prateleiras das tragédias gregas. Publicações antigas, bolorentas e de páginas amareladas. Cheiro de mofo, umidade que gruda nos dedos e me faz espirrar. Puf! Foi o barulho abafado que o livro fez ao cair no chão. Risos nervosos. Minhas mãos suavam frio e os óculos dele estavam tortos. Quis lhe dizer, mas estava tomada de vergonha. Daí veio o beijo, tímido como as primeiras leituras. A parede no final do corredor, o gosto da língua geográfica nas lambidas dos Cânticos. A mesma fúria que mais tarde, num descuido da bibliotecária, nos fez limpar o chão da sala dos clássicos universais.

Agora subimos ladeiras à procura de um lugar. Paredes altas, que caibam a história que carregamos nas malas: capas duras, edições de bolso, enciclopédias, coleções. Casar amor é fácil. Idéias e livros, não. Entramos no sobrado, uma casinha de fachada amarela, duas janelas e porta na frente. Corredor estreito, pátio interno separando a cozinha, cheia de baratas. A torneira do banheiro que não saía água e as goteiras no quarto. Penduramos na entrada um provérbio chinês e escalamos escadas para empilhar nas prateleiras, os livros. Centenas deles. A empregada faltou, mas nos deixou com as últimas aquisições do sebo limpas. Ele abre a página de Otelo, eu me debruço sobre as de Beauvoir. Mulheres, homens, estradas, fazendas, montanhas, desertos, traições.

Veio a imagem da camisa de seda manchada de batom. Meu ódio, a lavanderia. E o maldito telefonema. Não virá para o sarau. Reunião de última hora na empresa. Meus dedos passeiam nas páginas, aflitos. Duas horas depois, novo telefonema. Acidente na estrada, pista interditada, carros em fila indiana, lentidão digna de Kundera, ele diz. Três horas da manhã. Os relógios da casa anunciam abismo, escuridão. Histórias de realismo fantástico atrapalham minha leitura, fecho a Odisséia, jogo o casaco por cima da camisola, apanho as chaves, bato a porta, subo no carro e pego a estrada. Asfalto fresco e pista vazia. Nenhum movimento. Refaço o trajeto percorrido por ele, do trabalho ao sobrado. Paro em bares, botecos e inferninhos que encontro no caminho. Recebo cantadas grosseiras, enfrento o mau cheiro dos banheiros, a fumaça suspensa em meio às luzes noturnas, o bafo quente das bebidas baratas. Vou desistir.

Mas justo na hora, adivinho a traseira do carro dele no estacionamento. Dou ré, paro ao lado e desço. Um homenzinho surge do nada e informa que não há vagas. Todos os quartos estão ocupados, moça. Abro a bolsa, tiro o pacote branco com o dinheiro do aluguel e condomínio, estendo a mão ao homem, minto. Minto bem, pego a chave e peço que me diga em qual deles está o dono do carro.

Com o estômago embrulhado, tiro os sapatos, piso no chão, paro em frente ao lugar, deixo cair a bolsa de tiras longas, enfio o metal na fechadura e empurro a porta. No meio do quarto, a cama redonda. Lanternas vermelhas, teto envidraçado, piso xadrez, frigobar, taças. No espelho em frente, a imagem do homem nu, com as pernas estendidas e as mãos ocupadas.

Sem pensar duas vezes, tiro da bolsa o canivete que usava para separar folhas grudadas, caminho até ele, e antes que possa reagir ou dizer qualquer coisa, toro-lhe os dedos. Viro as costas e penso nas mil e uma noites que rolamos no tapete embalados pelos artifícios de Sherazade, nas estantes da biblioteca, no chão dos clássicos, no último sebo, nos saraus...
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Como disse, perdoaria tudo. Tudo menos encontrá-lo ali, naquele motel, àquelas horas da madrugada, sozinho. Com um livro nas mãos.
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Vássia Silveira
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Inté...

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