quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Felicidade Clandestina

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
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Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".
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Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
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Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
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Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança de alegria: eu não vivia, nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
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No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife.
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Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
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Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono da livraria era tranqüilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.
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E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
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Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.
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Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!
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E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.
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Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
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Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
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Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
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Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
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Clarice Lispector, in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
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Acho que quase toda criança tem uma estória nesses moldes, pra contar. Quando meninota, passei por esta mesma situação. Uma colega de escola me enrolava todos os dias, dizendo que me emprestaria o bendito livro e nécas. Só que o final não foi tão feliz assim, não apareceu nenhuma mãe pra interceder a meu favor... nem sei como acabou a estória, sequer lembro-me do título do livro... vai ver bloqueei... será que virou um trauma de infância?... vá saber...

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Numa outra vez, participando de uma coroação...


Deixe-me explicar primeiro do que se trata uma coroação, pra quem não sabe.
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No mês de maio, comemora-se por essas bandas de cá, o mês de Maria (mãe de Jesus). E, durante todo o mês existe um ritual na Igreja Católica, onde meninas se vestem de anjinhas (agora meninos também participam, mas na minha época, não...), aprendem a cantar as músicas em louvor à virgem, acompanhadas por um coral, composto por crianças maiorzinhas e, uma felizarda, que é a escolhida para solar a música no momento em que coloca a coroa sobre a cabeça da santa. Isso se repete em todas as missas, fazendo um rodízio de crianças...

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Eu, nos meus 9 ou 10 anos - não me recordo com precisão, já era grandinha pra ser "anja", então fui participar do coral.

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Eis que eu estava toda entusiasmada, esperando o grande momento de entrar na Igreja... nisso, fiquei a admirar as roupas lindas que as outras meninas do coral estavam usando (vestidos rodados com anágoas de tule, estilo daminhas de honra)... o meu vestido era bem simplezinho, em vista do das outras, mas eu estava tão feliz, que nem atinei para isso naquele momento. Eu me sentia muito bem, obrigada! Na minha cabeça eu estava abafando!

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Acontece que uma criança, do nada, resolveu vomitar a verdade em minha cara... criança sabe muito bem ser cruel quando quer, e até quando não quer... neste caso foi querendo mesmo... então a tal menina me disse com todas as letras que eu estava feia! E o recado foi dado de tal forma, que era como se ela estivesse me pondo no meu devido lugar, que, não era aquele, junto delas...

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Nossa, meu mundo caiu naquela hora... entrei na Igreja com os olhos lacrimejando... contei os segundos pra sair voando dalí, e fui embora pra casa aos prantos e muito envergonhada...

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Anos depois tentando entender este fatídico episódio, cheguei a conclusão que, de uma forma ou de outra, eu incomodei aquela menina, e muito. Ou com a minha presença, ou com a minha alegria transbordante, ou com a minha beleza irradiada naquele instante. Sim, eu era muito bonitinha, e posso provar, viu!?...hehe... Hoje eu sei disso, mas na época...

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E vocês, têm alguma estória nesse sentido? Contem pra gente...

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Inté...